sexta-feira, 7 de setembro de 2012

Coronel Abraão na Terra Perdida







Há muitos anos, existiu um coronel chamado Abraão, muito conhecido pelo apelido Impiedoso no norte do Brasil. Há muitos anos também existia uma cidadezinha, na região que posteriormente ficaria conhecida como Brasília, que era conhecida (pelos poucos que sabiam de sua existência) como Terra Perdida, pois era muito mal localizada. 
 Até que um dia, um longo e infernal dia, o destino dos nossos dois personagens se cruzou. O coronel Abraão estava cansado, tinha executado muitos inimigos políticos naquele dia e queria descansar. Junto com seus jagunços, saíram à procura de uma pousada. Acabaram dando de frente à Terra Perdida. Nem mesmo desceram dos cavalos, e o povo já começou a sair de suas casas para ver quem estava chegando na cidade:
-Senhoras e senhores, vão tudo vocês pra pracinha central. Tá na hora de uma nova governança se instalá na cidade- disse Abraão
 Os comparsas do Coronel, de armas em punho, escoltaram os sujeitos ao centro da cidade, se é que ela tinha uma. Se é que aquele pedaço de terra infeliz pode ser chamado de cidade.
 Não eram mais do que oitenta pessoas, afinal era um povoado muito pequeno, se contassem os moradores que não saíram de suas casas e não foram rendidos, não passariam de cento e cinquenta pessoas.
 Quando os infelizes seres estavam todos indefesos, rendidos em um centro da uma praça muito mal cuidada (chegava a ser uma vista horrenda, eu diria), coronel começou a passear entre eles e perguntou a um senhor que estava até bem vestido, comparado ao resto das vítimas:
-Tu Cabra. Se chama como?
-Eutênio Eustáquio Barroso
-Tens bens valiosos guardado aí contigo?
-Mas é claro. Tenho muito dinheiro guardado aqui comigo.
-Pois me passe. Dinheiro nunca é perdido.
-Tome, disse o senhor, esticando trinta cruzeiros, é tudo que eu tenho.
-Oxente, mas é só isso? Eu nem mesmo consigo limpar meu traseiro com essa mixaria. Engula esse dinheiro. Trinta mangos é troco para um coronel como eu- berrou Abraão
-Vixe, mas isso é o valor mais alto que vossa senhoria vai encontrar por aqui. Sou o banqueiro mais rico da cidade. A maioria de nós vive com só uns 10 cruzeiros por mês.
-Ara. Mas que probreza. Meus candangos tem mais dinheiro que tu. Se for fazer falta, fique com essa merreca. E tome mais trinta tostões pra ajuda. Tava precisando fazê caridade mesmo, falou coronel, indignado, e volte pro teu lugar. Vamo, vamo. Corre candango.
-Gradecido senhor- disse Eutênio, se afastando.
-Tem sorte d’eu tá com bom humor. Se fosse ou’trora, num teria perdoado um velho larazento e gordo como tu. E por fala em gordura, tô querendo engordá, enche os bucho. Quero cumê- gritou Abraão, efusivamente, olhando em direção à suas vítimas.
-Tem um restaurante bem a sua esquerda, capitão- falou um rapaz magro, tremendo.
-Pois então tá esperando o quê? Tu tem duas perna, dois braço, sabe andá. Vai lá e me traga cumida, seu Fede Esterco. Obedeça Coronel Abraão se num quisé sê furado.
 O sujeito saiu correndo, mais rápido do que o Diabo fugindo da cruz. Meia hora depois voltou com uma tremenda travessa de Lasanha, e entregou à encomenda ao coronel:
- Já não era sem tempo, abestado. Deixa eu porvá essa lasanha aqui.
 O coronel provou uma colherada. Nem bem mastigou a comida e cuspiu com raiva:
- Quem foi o fiote de quenga que fez essa birosca? Traga a velha endemoniada pra modis deu insiná ela a cozinha- disse Abraão, quase espancando o pobre homem.
 O senhor voltou até o restaurante e chamou a cozinheira. Alguns minutos depois, ele voltou acompanhado pela mulher:
-Sinhô me chamô?
 Com um rápido movimento, O Impiedoso retirou a arma do cinto e com um único tiro matou a cozinheira:
-Isso é para voismicê aprendê a cuzinhá. Bicha lazarenta. Vai cuzinhá no cardeirão do capeta agora. Já que num dá pra cumê nessa porcaria de cidade, quero é uma bebida. Mais tem que ser daquelas bem forte, de derrubá macho.
-Ora, porque não pediu antes?, disse o banqueiro, temos a melhor cachaça da região.
-Pois me traga. E logo, cadango mal pago.
 O home retirou uma garrafa da sacola que carregava e a esticou para o coronel:
-Deixa eu ver.
 E então Abraão deu o primeiro gole, e depois reclamou:
- Mas isso mais me parece água de privada de tão suave. Nem dá pra senti o gosto do álcool.
-Mas é a mais forte que temos por aqui- explicou o banqueiro.
-Mas cêis são tudo um bando de estrombago fraco. Vai, jogue fora essa garrafa. Tira essa água de poço da minha frente.
 O coronel ficou andando em meio ás suas vítimas, reclamando entre os dentes. Depois de um longo silêncio, disse:
- Bom. Vocês num tem cachaça boa, num tem cumida boa, são um bando de pé rapado... O que cêis vão fazê pra compensá minha viagem até aqui?
-Podemos lavar as coisas dos senhores. Roupa, armas, utensílios... -Falou uma lavadeira que estava também rendida.
-Brigado, mas gosto das minhas coisa do jeito que tá.
-Podíamos dar nossos alimentos, que sustentariam vocês durante a viagem para uma cidade próxima- disse o dono do maior e único armazém de Terra Perdida.
-Brigado, mas cumida nois tem de sobra
-Que tal se nós arrumássemos cavalos mais resistentes para os senhores?- sugeriu um criador de jumentos, mentindo sobre a existência dos tais cavalos, já que os mesmos não existiam naquelas redondezas.
-Os meus estão ótimos.
-Umas lembrancinhas artesanais?- disse um artesão que por ali estava.
-Pra quê? Pra pendurá no pescoço? Num tenho espaço prá fica guardando tranquera de candango.
-Bom, imagino eu que vossa pessoa não vai se deitar com mulheres há um bom tempo. Afinal, mulheres não aguentam essas viagens demoradas que o senhor e a tua patota fazem. Talvez o senhor queira dar uma descansadinha por aqui, acompanhado de uma boa senhora- falou o banqueiro novamente, com uma voz amiga.
-Taí. Boa idéia. Vai lá e me traga todas as meninas de vinte a vinte e cinco anos da redondeza. Uma delas eu escolherei como companheira de hoje. E traga também um padre, a mode d’eu me confessar enquanto espero.
 E assim foi feito. O coronel acompanhou o pároco local até a igreja (levando consigo, é claro, um capanga para fazer segurança), enquanto o homem chamava todas as garotas que correspondiam às exigências do Abraão para o centro da cidade.
 Meia horinha depois, quando todas as meninas já estavam no local marcado, chegou também o coronel e seu capanga, sem o padre acompanhando.
-Mas é impossívi. Nem o vigário daqui presta. Pedi para ele me acompanhar num padre nosso, o veio num sabia nem como começá a reza. Então perdi a paciência e dei-lhe dois tiros no meio da testa. Fez o que eu pedi, candango?
-Claro, aqui estão.
- Dexa eu vê, disse o Impiedoso, analisando menina por menina. Muito feia, muito gorda, muito baixa, muito dentuça, parece homê, você também parece, idem, essa nem humana parece, muito estranha, você também não... É, você aí, por úrtimo, veia cá. Tu é a escolhida.
 A menina, receiosa, foi até o homem, caladíssima. O coronel pegou na mão dela e perguntou:
-Teu nome?
-Diucréssia
-Tua idade?
-Vinte e um.
-Hum, a idade perfeita. És virgem, num é?
-Que nada. Sou mãe solteira. Meu filho nasceu faz três semanas.
-Mas o que?, berrou Abraão, jogando a menina no chão e puxando a arma da cintura. Quer dizê que peguei numa impura? Vou ter que arrancar minha mão fora por tua culpa, mulhé.
-Por favor, deixe-me ir para a casa- suplicou a garota.
-Tu vai é para o inferno, impurecê o capeta, desgraça- e o coronel puxou o gatilho da arma, fazendo sua terceira vítima.
 O coronel, já descontente com os resultados obtidos, segurou o banqueiro pela gola e disse-lhe:
-Essa foi a gota d’água. Arranje uma pousada pra mode d’eu me meus capanga repousá hoje a noite. Amanhã bem cedinho, nois vai dá o pé dessa cidadezinha desgraçada. Entendeu candango?
-Mas é claro, mestre. Acompanha-me até a pousada.
- Vamos ter que fazê rodízio de vigilância de novo, chefe?-perguntou um dos jagunços
-Não carece. Esses candango são tão incompetentes que num devem nem sabe como se puxa um gatío.
 Na manhã seguinte, após matar o dono da pousada como vingança pelo colchão duro e pelo travesseiro que fedia a vômito, o Impiedoso e seus companheiros subiram nos cavalos e se dirigiram para fora da cidade:
-Não vai se despedir do seu mais novo amigo, coronel?-Perguntou o banqueiro, em tom de brincadeira.
-Meus amigos estão tudo morto, candango. E por fala nisso, é melhor arranjá uma cova a mais. Acabei de manda o dono da pousada pro beleleu. Faça mais uma cova no lado das outras quatro.
-Quatro? Mas, sem contar com esse último, o senhor só matou mais três pessoas. Então, serão quatro covas, e não cinco.
-Ah é. Então eu errei a conta?, questionou-se o coronel, antes de puxar novamente o revolver e desferir um tiro no peito do banqueiro. Pronto, agora tá certo. Simbóra macacada.
 E saíram o coronel e sua equipe mundo afora. Esse foi o final da nossa história em Terra perdida. Mas durante muito tempo ainda se ouviu falar de Coronel Abraão, o vingador nordestino maneta.


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