terça-feira, 28 de agosto de 2012

A Perdida da Rua de Baixo

                                                                      




                                                                             A Perdida da Rua de Baixo

 Há uns treze ou quatorze anos, aqui nessa região da cidade, morava uns senhores vadios, bêbados, malandros sem caráter. Moravam numa casa antes vermelha, agora rosada, pois fora desbotada pelo tempo e pela falta de cuidados. Não era muito grande, muito menos bela, pois as paredes descascadas e o jardim que mais parecia uma mata virgem passavam a imagem de um local desolador, amaldiçoado, sombrio, digno de ser cenário de um filme de Hitchcock.
 Nesta mesma pré-histórica residência, morava uma menina com cerca de vinte e cinco anos de idade, morena dos cabelos cor da noite, desnutrida de tão magra que era, tinha dentes podres e tortos, usava roupas amassadas e remendadas, além de ter fama de perdida. Era a Perdida da Rua de Baixo.
 O porquê desse apelido eu realmente não sei. Deve ter sido coisa do Seu Maneco, um velho metido a sábio, que vivia cantarolando os fatos da vida alheia pela cidade. Mas o que interessa é que ninguém aqui da rua conversava com a tal moça, nem mesmo passavam pela mesma calçada que ela. Minha vó dizia a nós, homens-meninos da família, que não devíamos nem mesmo cruzar nossos olhares com os dela, pois aquela menina continha a tentação da perdição cravada no olho.
 Mas éramos garotos, não ligávamos para que os mais velhos diziam. Sempre que podíamos, ao fim da tarde, acompanhávamos de longe aquela alma esquálida ir até o bar do Pedrão, comprar cigarros e umas latinhas de cerveja, daquelas bem vagabundas mesmo, e voltar para a casa com as mercadorias. De vez em quando, um dos vadios acompanhava a garota. Isso muito raramente, quase nunca.
 Teve uma tarde, daquelas de inverno, bem frias, que ela, ao término de sua rotina diária, em vez de seguir de volta para casa, a infeliz menina ficara sentada na guia de uma calçada próxima, fumando e degustando uma latinha de cerveja. Eu e alguns amigos observávamos de longe a cena:
 - Então cambada, vamos lá falar com a menina ou vamos ficar aqui olhando para o céu?-perguntou Luiz Paçoca, um chegado meu, o mais velho de toda a turma
-Sei não, eu disse ressabiado, pode ser que dê encrenca se os adultos descobrirem.
-Larga de frescura irmão. “Vamo” lá cambada- falou Pequito, um dos garotos, se levantando e atravessando a rua, indo em direção à menina.
 Para o resto, só nos sobrava acompanhá-lo. Pedrão, o mais malandro, foi logo sentando ao lado da menina e dizendo:
-E então, minha filha, qual é tua graça?
-Vai cuidar da sua vida, moleque.
- Bom, se não vai dizer, vou ter que te chamar de Estranha. Prazer Estranha, sou o Pedro- disse ele, estendendo a mão em direção à “Estranha”.
-Servidos?- perguntou ela, nos oferecendo um maço de cigarros e uma lata de cerveja.
 Imediatamente, os garotos, com exceção de mim e do Ezequiel, garoto roliço e de baixa estatura, sentaram ao lado da menina, pegando cada um o cigarro e a bebida. Eu, junto com meu “parceiro de pureza”, fomos nos sentar num banquinho ali perto, nos reservando a  apenas escutar a conversa:
-Então, “cê” é o que daqueles caras?- perguntou Lindu, primo do Pedrão.
-Mulher, amante, escrava... Defina como você quiser.
-Fazia o que antes de vir para cá?- indagou Pedrão, em meio às baforadas de cigarro.
-Garoto, nem queira saber- disse ela, gargalhando
 Todos riam agora. Eu ria também. Conforme a conversa se desenrolava, descobríamos coisas realmente horríveis. Descobrimos que ela era de uma família rica, mas havia saído de casa para se entregar para o mundo das drogas.  Descobrimos também que ela havia abortado várias vezes, pois os tais vadios que moravam com ela viviam estuprando-a. Em certo ponto da conversa, ela nos segredou que na manhã seguinte sairia da cidade:
- Vai para onde, mulher?- questionou Luiz, quase cuspindo a cerveja que estava bebendo.
-Sei lá. Vou me perder pela vida.
-Tem certeza?
-Absoluta. Estou cansada dessa cidade, desse povo. Se eles fossem como vocês, não tivessem preconceito com as diferenças, tudo bem. Mas são frescos, bando de saco de pus. Me dão nojo.
-Então vá e seja feliz- disse Luiz, que estaria comovido, se não estivesse bêbado.
 A Estranha agradeceu as palavras, se levantou, enfiou as latas vazias numa sacola, jogou as bitucas de cigarro no chão, e foi embora, cambaleante. Foi indo, indo, sem olhar para trás. Mesmo depois dela ter ido, ficamos ali, sentados, comentando a conversa com a garota e como todos nós fomos injustos com ela durante um longo tempo. Infelizmente, só fomos perceber isso tarde demais. Era oito da noite quando nos despedimos uns dos outros e voltamos para a casa.
 Na manhã seguinte, logo que levantei fui até à casa rosa-desbotada, para ver se encontrava vestígios da Perdida da Rua de Baixo. Chegando lá, percebi uma grande briga, com os residentes da mesma gritando feito animais, culpando uns aos outros pela saída da menina. Parece que nem mesmo eles sabiam da fuga da garota. Voltei para casa desgostoso, pois queria falar com a Estranha, nem que fosse por dez minutos. Queria pedir desculpas pelo receio idiota do dia anterior e desejar uma boa viagem a ela.
 Passaram-se alguns meses até quando voltaram a falar dela aqui, pela cidade. Disseram que tinha fugido com um rico comerciante da região, e que iriam se casar em breve. Outros, falaram que ela fora pega se prostituindo nas cidades vizinhas. Alguns chegaram até mesmo a falar que fora morta pelos ex-companheiros (que agora não moravam mais por aqui) e seu corpo tinha sido desovado num terreno abandonado que tinha aqui por perto. Enfim, tudo fofoca, coisas não comprovadas.
 Até hoje nenhum de nós tivemos mais notícias da Perdida da Rua de Baixo.   

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